Como gerir equipes, reter talentos ou se comunicar com os consumidores
em um mundo sem bússolas, em constante mutação? Lidar com dilemas desse
quilate, óbvio, não é uma tarefa simples. Mas algumas pistas para a
solução de problemas desse tipo podem ser encontradas em um lugar
insólito: em um divã, por exemplo. O psiquiatra e psicanalista Jorge
Forbes, um dos introdutores das teorias de Jacques Lacan no Brasil, está
convicto de que as empresas precisam fazer análise. Isso para que
entendam as peculiaridades de uma época, na qual as hierarquias rígidas e
verticalizadas fazem pouco — ou nenhum — sentido. “As relações humanas,
sob o ponto de vista psicanalítico, não são mais intermediadas por um
padrão estável”, diz Forbes. “E isso torna todos mais frágeis. Por isso,
as pessoas estão cada vez mais sujeitas a passar por verdadeiros
curtos-circuitos”. Daí, observa o médico, a explicação para a ocorrência
de tumultos variados, o que inclui desde manifestações populares ao
aumento de crimes provocados por reações intempestivas.
O senhor tem observado a ocorrência frequente de crimes
hediondos, envolvendo pessoas comuns. O que está acontecendo em nossa
sociedade?
Temos de constatar algo óbvio. Um tipo específico de crime, até
recentemente raro, está se tornando cada vez mais comum, quase habitual.
Presenciamos uma verdadeira epidemia desse gênero de crimes, marcado
por linchamentos, pessoas picadas (zeladores e maridos), além de pais,
mães e filhos assassinados uns pelos outros. Não estou dizendo que
vivemos em uma época em que acontecem mais crimes. Não é isso. Mas é
inegável que há um aumento de um problema específico. Casos que antes
eram raros, hoje se tornaram mais comuns.
O que distingue esses crimes?
Todos são hediondos e foram praticados por pessoas comuns, sem antecedentes criminais, sem ficha corrida.
Por isso, surpreendem?
Exato. São inusitados, no sentido específico da palavra — ou seja,
parecem fora de lugar. As pessoas que os cometeram são muito semelhantes
àquelas que nunca fizeram nada parecido. Esse tipo de situação coloca
todos em alerta. Deixa as pessoas angustiadas. Elas dizem: “Me explique
qual a diferença entre mim e esses criminosos, porque eu quero ter
certeza de que nunca faria algo parecido”. O ser humano está se
defrontando com um aspecto assustador da sua condição: somos bichos
perigosos. E a nossa época favorece essa percepção.
Por quê? Qual a influência desta época?
O homem reage de forma diferente conforme a época em que vive. Aliás,
nós chamamos de época a forma como o homem fixa a interação com os
outros homens e com o ambiente em determinado espaço de tempo. Nós
passamos do período moderno para o pós-moderno. As mudanças foram
expressivas.
Qual a diferença entre esses dois períodos?
No moderno, sob o ponto de vista psicanalítico, as relação humanas eram
intermediadas por um padrão estável. Na família, havia a lei do pai.
Nas empresas, os funcionários seguiam a lei do chefe. Na sociedade
civil, vigoravam as leias da pátria. A relação era piramidal. Ela
estabelecia o certo e o errado e as pessoas criavam uma identidade a
partir desse padrão.
O que ocorre na sociedade pós-modernidade?
O laço social muda. Ele deixa de ser único, hierarquizado. O padrão até
existe, mas se torna multifacetado. Há uma multiplicidade de padrões.
Na sociedade pós-moderna, que também é chamada de “rede”, as relações
humanas também são mais diretas. Elas são menos intermediadas. Não
passam por um elemento comum de reconhecimento, como o pai, o chefe e a
pátria. Essas novas relações tendem a ter uma intensidade maior, mas
sofrem rupturas de maneira muito mais rápida. O chamado “deletar”,
utilizado no computador, passa a ser aplicado nas relações pessoais. As
pessoas se “deletam” o tempo todo. Hoje, são próximas. Amanhã, acabou.
Não estou dizendo que isso vai ficar assim. Eu defendo a ideia de que
estamos vivendo um momento de passagem.
E o que a época tem a ver com os crimes inesperados?
Esse novo mundo tem uma característica importante. Ele cria uma relação afetiva sujeita a curtos-circuitos.
Como assim?
Antes, havia um circuito pactuado, com o pai, o chefe e a pátria, em
que você tinha maneiras de se relacionar e até de brigar. Agora, não. Os
padrões são menos evidentes. E, de repente, uma pessoa entra em
curto-circuito e pode cometer uma atrocidade. O que é uma surpresa até
mesmo para ela. Repito: com isso, não quero justificar e nem diminuir
responsabilidade dos criminosos por seus atos. É justamente o contrário.
Como vivemos em uma sociedade que passou por uma desregulamentação, que
não tem mais uma norma clara, temos de aumentar o botão da
responsabilidade subjetiva. É bom que nos assustemos com esses crimes,
porque, sim, nós somos parecidos com os criminosos. Qualquer pessoa está
fragilizada e pode ter reações intempestivas.
O senhor fala que vivemos em um mundo sem bússolas. Faltam valores?
Sim, os valores têm tudo a ver com isso. Na verdade, estamos em um
período de mudança de valores. Fomos criados com base em valores
externos. Nesse ponto, concordo com Luc Ferry [filósofo francês]. Ele
diz que o homem ocidental não morre mais por grandes ideais, mas morre
pelas pessoas que lhe são próximas. É mais sensível à família, ao amigo,
à namorada. O que existe é uma responsabilidade menos heroica. A
amizade toma o lugar da admiração.
Por que as pessoas estariam dispostas a morrer?
A pergunta é por que, ou por quem, eu me sacrifico. A palavra
sacrifício tem a mesma base etimológica do termo sagrado. Aquilo que é
sagrado para mim são as pessoas mais próximas. Aquelas que dividem um
espaço tangível na minha experiência vital: meu irmão, meu filho, minha
mãe, meu professor. Na época moderna, por ser vertical, nós admirávamos
pessoas como Winston Churchill, John Kennedy, Juscelino Kubitschek.
Admirávamos os grandes homens. Se bem que é verdade que o Brasil nunca
admirou muito ninguém. O brasileiro nunca se tomou muito a sério, o que
faz com que este seja um a país pós-moderno por excelência.
Essa mudança na forma de admirar também altera a atitude das pessoas?
Sim. As pessoas, principalmente com mais de 40 anos, mediam as suas
atitudes para saber se elas estavam mais próximas ou distantes da pessoa
admirada. Se você educar um menino do século 21 a partir desses moldes,
ele vai achar graça. O mundo de hoje não tem lugar para esse tipo de
admiração vertical e distante.
Como as empresas entram nesse cenário?
Mal, mal, muito mal. Elas cometem erros básicos. Ainda acham, por
exemplo, que a amizade pode ser uma coisa perigosa. Na verdade, é o
contrário. Como vimos, ela é um valor fundamental nesta época. Antes,
quando você indicava uma pessoa para um posto no trabalho, dizia: “Ele é
um cara bom e não porque é meu amigo”. Hoje, as pessoas dizem: “Ele é
bom e, além do mais, é meu amigo”. Não há problema nessa relação de
amizade e nem todas as empresas perceberam essa mudança como parte de
uma alteração maior. Hoje, como eu disse, vivemos em período mais
flexível, com menor padronização. Por isso, ele se torna incompleto. A
subjetividade surge como um recurso importante para completar este
mundo. Daí, a importância dada à amizade. Este momento que vivemos é
muito mais da razão sensível do que da razão asséptica.
Quais os outros problemas das empresas?
Elas tentam criar uma imagem de meninas bem comportadas de uma forma
equivocada. É por isso que os seus princípios — missões, valores e
códigos de ética — são genéricos. Todos dizem que se trata de uma
companhia sustentável, que respeita a competição ética, além dos
funcionários e do meio ambiente... Esses documentos corporativos usam
termos padronizados. Assim, todos parecem iguais. Mas isso dá uma
impressão de falsidade. Depois, os executivos perguntam: “Por que não
temos aderência? Por que perdemos tantos funcionários?”. Ora, quem
acredita nesse tipo de coisa? Ninguém. Nem eles mesmos.
O que fazer? Como melhorar esses códigos de ética?
Estamos em um mundo novo, com novos sintomas, mas utilizando velhos
remédios. Essa é a pior coisa a ser feita. Você vai dormir tranquilo,
achando que está medicado, mas é o contrário. O problema continua lá e
só está aumentando. As empresas devem falar mais ao desejo e menos à
necessidade das pessoas. Elas têm de dar menos valor às histórias
gloriosas e acentuar as histórias singulares. Os códigos de ética têm de
ser mais parecidos com pactos, nos quais os funcionários vejam
representado o mundo atual e não o mundo anterior, que era de caráter
disciplinador.
As empresas precisam ir para o divã?
Sim. Eu concordo com o jornalista Zuenir Ventura. Ele disse
recentemente que a sociologia não dará mais conta da nossa sociedade. A
psicanálise, por sua vez, é uma teoria mais forte para entender a época
atual. Nós temos uma prática bastante consistente e estabelecida
conceitualmente para não nos apavorarmos diante do mundo incompleto.
Inconsciente, aliás, quer dizer aquilo que eu não sei. O mundo de hoje
funciona através de mecanismos incompletos.
Quais os outros erros das empresas?
Vejo que, às vezes, as empresas não entendem qual é o produto que
realmente têm. O iPhone, por exemplo, não foi exposto por Steve Jobs
como uma máquina. Ele foi apresentado ao mundo como uma interface. Com
isso, deixou de ser um objeto de consumo. Ele se tornou uma referência
cultural. Uma empresa não sobreviverá por muito tempo se não for uma
editora de cultura. E não estou falando de patrocínio de cultura. Isso é
outra coisa. As empresas têm de descobrir qual é a maneira que os seus
produtos alteram o contexto de nossas vidas. É isso o que devem
enfatizar.
O senhor disse que o software criado por Freud não dá mais conta da sociedade. Isso também tem a ver com a pós-modernidade?
Sim. Freud criou um software maravilhoso. Muito melhor do que o do Bill
Gates. Pelo menos, durou cem anos. Ele precisava entender de que
maneira o homem estava articulado com o mundo. Captou a estrutura da
organização humana da sua época. Percebeu que ela era piramidal. Colocou
a mãe, do ponto de vista metafórico, como aquilo que quero alcançar. E
colocou o pai como o percurso. Tudo isso com uma simplicidade
inacreditável. Ele nos convenceu de que éramos edípicos, que a verdade
humana era edípica. Agora, isso mudou.
Como?
Antes, eu buscava, na minha condução analítica, interpretar a posição
edípica das pessoas. Com isso, elas ficavam sabendo mais de si mesmas.
Hoje, essa passagem também existe na análise, mas há algo mais
importante: tentar saber agir frente aquilo que não se compreende. Não
vivemos mais em uma sociedade iluminista. Está é uma sociedade que
funciona por meio de monólogos articulados e não de diálogos.
O senhor pode citar um exemplo?
Nas manifestações de rua do ano passado, todos ficaram loucos para
entender que diabo era aquilo. E não tem nada para entender. Aquilo era
um diabo mesmo. Era tudo multifacetado. Não havia uma bandeira de luta.
Não adianta tentar entender aquelas manifestações como os protestos de
1968. Aliás, hoje, as pessoas não perguntam mais se os outros estão
compreendendo os seus pontos de vista. Elas perguntam se aquilo que faz
sentido para mim, também faz para você. E não se trata do mesmo sentido
para ambos. Daí o surgimento de termos como “tá ligado?”. Ele questiona
se houve um sentido compartido. Não se existiu uma significação comum. É
isso o que está na essência da chamada sociedade viral. As empresas
também não sabem trabalhar nesse ambiente. Estão reagindo e insistindo
com modelos do mundo anterior porque se sentem mais seguras. Ficam
inseguras quando se tira o padrão. Elas adotam palavras do mundo
pós-moderno e agem como antes. Precisam fazer essa passagem
paradigmática.
Mas as manifestações de 2013 não mostram que as pessoas buscavam uma liderança? Não havia um anseio pela velha verticalização?
Só conseguimos entender a organização por meio da figura do líder,
aquele que conduz uma série de pessoas que dão a ele esse papel. Esse é o
modelo anterior. O novo modelo de líder não é esse. É de uma pessoa que
cause em você mais um desejo e menos que explique para você como lidar
com uma necessidade. Observe, durante os protestos, o governo tentou
responder àquelas pessoas por meio do discurso da necessidade. Ele
dizia: “Ah, vocês querem que o preço das passagens de ônibus diminua?
Está bem”. Mas não era isso que estava em jogo.
E como o governo deveria responder?
Mas a questão é justamente essa. Não se trata de responder. É preciso
interagir. Nós ainda estamos presos a modelos antigos. Observamos um
problema e tentamos encontrar uma solução. Não é isso. Neste caso, é
interessante observar como as mulheres agem. Elas são muito mais
pós-modernas do que os homens. Quando uma mulher traz um problema, o
homem já pensa em sugerir uma solução. Diz: “Ligue para o marceneiro,
para o encanador, faça isso, faça aquilo”. Mas ela não quer uma solução.
Ela quer expor o problema. Estamos agindo como homens que não conseguem
lidar com a queixa feminina. A pós-modernidade tem um quê de queixa
feminina. Ela não tem, necessariamente, um objeto definido. Com ela,
muitas vezes, o mais importante é interagir. Não solucionar.
[http://epocanegocios.globo.com/Inspiracao/Empresa/noticia/2014/06/jorge-forbes-empresas-precisam-ir-para-o-diva.html]